quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Desapego


Foi necessário que a chuva – sempre ela – me despertasse. Na madrugada, acompanhado pela lua encoberta por nuvens e pelas fracas e vacilantes luzes dos postes que iluminam a rua que, da varanda, com algumas gotículas da chuva mansa me tocando as mãos, lavando toda a sujeira, ou tocando minha face, se fundindo com as lágrimas que rolavam, também mansas, foi que eu parei pra pensar. E refletir.

É necessário praticar o desapego. O que não serve mais, descarte. O que não tem mais nenhuma utilidade, que vá para o lixo. O que te prende ao passado, deixe passar.

O homem tem a necessidade de seguir em frente, sempre. Mais rápido ou devagar, mas sempre em frente, seguindo.

Não é fácil deixar algumas coisas pra trás. Acredite, eu sei. Amamos demais algumas coisas, algumas situações, algumas pessoas pra simplesmente deixar pra lá. Mas é necessário, às vezes. E, no fim, a gente sempre percebe que foi o melhor a se fazer. Precisamos abrir espaço para o novo. Talvez, tudo o que a felicidade está esperando seja esse espaço, essa oportunidade.

É necessário desapegar. É necessário soltar as rédeas, de vez em quando, e deixar a vida tomar o seu próprio rumo. É necessário deixar a chuva cair. E molhar. É necessário deixar ser.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Café


Abro os olhos pela manhã e é só nisso que penso: café. Dos fortes. Depois de mais uma noite mal dormida, é uma necessidade gritante. Quero um café com a força dessa minha preguiça que me impede de me mover no colchão. Oh, Deus!, minha cabeça! Dói. Não sei se por sono ou pela falta do café ou pelo stress ou pelo hábito, mas dói.

Café.

Vamos, homem, levanta! Não se achou grande o suficiente pra tomar conta de si próprio? Achou que era só arranjar um apartamento barato e não dividir a chave com ninguém? Que era só jogar um colchão velho no canto do quarto e dizer que era minimalismo? Que era só levar junto o notebook que ficaria tudo bem? Escuta, o seu notebook faz café? É, eu imaginei que não. Agora, levanta, vá fazer o seu café, porque ninguém mais vai fazê-lo. Não há mais ninguém. Você está sozinho nessa, campeão.  Mais uma vez.

Café.

Ok, de pé! Pra cozinha. Lavo o rosto na pia dali mesmo. Eu passei pelo banheiro, mas o café é mais urgente. Merda! Cadê o café? Não é possível que tenha acabado! Ai, minha cabeça! Banheiro, rápido! Escorrego no tapete, mas cheguei a tempo de jogar tudo o que não podia mais ficar no meu estômago no vaso. Detesto vomitar. As lágrimas sempre caem junto. E esse cheiro... Cheiro de álcool. Ressaca. A dor de cabeça é por causa da ressaca. Mas por que agora, se nunca tive isso antes? Porque eu também nunca bebi tanto antes. Era pra ter sido só uma tequila, não era, seu idiota? E sem ter tomado tanta cerveja, de preferência. E você nem gosta de cerveja! Idiota.

Café.

Mas eu vou precisar sair. E, pra sair, preciso de um banho. Sorte que, de alguma forma, consegui tirar a calça antes de dormir. Agora, seria uma tarefa impossível. Uma cueca não é tão complicado. Não quando se está sentado no chão do banheiro e não precisa se equilibrar, nem por um milésimo de segundo, em um único pé. Certo, cueca fora, pro banho. O chuveiro está queimado. O gênio aqui ainda não consertou. Ou tentou. Bom, pelo menos a água não vai ser aquecida. Nem que você tente. Porra, que frio! Rápido, passa o sabonete em tudo, tira logo esse cheiro, mas faça isso rápido. A manhã está fria. A água, mais ainda. Preciso me aquecer. A toalha. É sério? Você tirou a toalha daqui? E onde é que a enfiou, Einstein? No... esquece. Agora vai ter que enfrentar o frio até o armário, pra pegar uma nova. Corre! Mas não caia.

Café.

Enxuga, rápido. Vista-se, rápido. Não, essa camiseta não. Pega aquela camisa que você não vai parecer tão mal. Pelo menos vai parecer que era uma festa elegante. Mas você ainda vai ser o idiota que não sabe beber. Ah, quem se importa?, é só uma loja de conveniência. Parabéns por ter deixado a porta aberta a noite toda. Me impressiona o fato de ter chegado em casa. Entro no elevador, me olho no espelho. É, você está terrível! Passo pelo porteiro, ele diz algo indecifrável. Acho que foi um bom dia. Na dúvida, só aceno. Preciso ser rápido.

Café.

Olha o carro! “Sai da frente, louco!” Filho da puta! Foi por pouco. Toma cuidado pra não morrer, né? Morto, você não vai tomar café. Posto, por que tão longe? Três quadras nunca foram tão distantes. E tão fatalmente perigosas. Um passo em falso – e eles serão muitos, na minha atual condição –, é extremamente perigoso. Os carros não são os piores inimigos. Eu sou o meu pior adversário. Tá aí sua adrenalina, rapaz. Uma aventura real. Só não morre.

Café.

A última esquina. É só virar e você cai dentro do posto. Vamos, você consegue, você consegue, isso! Parabéns, você chegou vivo. Ou quase isso. Onde está o café? Reformaram isso aqui recentemente? Moça, onde fica o café? Como, não tem? Ainda não chegou o carregamento com o resto dos produtos... E o café é um desses produtos? Certo. Merda! E agora? Respira, pensa, corre.

Café.

Saio da loja de conveniência mais inconveniente da história à procura da felicidade. Ou do café. Não dá na mesma? Such a drama queen! Para com essa história e vai atrás do que você precisa. Anda, anda, espera. Será que... o boteco. O melhor remédio para a ressaca não é se manter bêbado? Quem sabe se... bom, vai que, né? Volta. O boteco ficou pra trás. Duas quadras atrás.

Café.

É pra correr, mas não esbarra nas pessoas, por favor. Derrubou a pasta da menina, agora vai ter que ajudar a juntar os papéis. “Obrigada”. Por nada!, posso esbarrar em você sempre que precisar. Exceto agora, que eu preciso correr. Um sorriso desesperado é minha despedida. Vai, vai. Ali, o boteco. Não, não, não, não, não, não, não, não! É brincadeira! Só pode ser brincadeira, meu Deus! Fechado. Inferno! Quero arrancar os meus olhos e tirar essa dor de cabeça com a mão, porque o café tá complicado. Essa minha saga merece um livro. Penso nisso depois.

Café.

Cara, você tá indo pra onde? Não para de andar, mas não tem um rumo certo. Casa? Ok, mas e aí, o que vai fazer? Vai virar café ou beber água quente? O porteiro está me olhando estranho. No mínimo acha que eu ainda estou bêbado. Mais tarde, todos vão saber do cara do 303. Foda-se. Elevador. Terceiro andar.

Café.

A porta se abre e caixas estão esparramadas do lado de fora do 302. Esse lugar ficou vazio por anos – você só mora aqui há três meses, não exagera! Me distraí com as caixas, não vi a movimentação dentro do apartamento. O cara sai de lá e me vê olhando a caixa que era quase do meu tamanho. “Não é tão pesada. Aí estão só as minhas roupas.” Como se roupas não pesassem. Seja simpático, sorria. “Oi, eu sou Tiago.” Oi, Tiago, eu sou um idiota qualquer que precisa, com urgência, de um café pra se manter vivo.

Café.

Será que você consegue ser ainda mais idiota? Desfaz essa cara. O Tiago tá te olhando de um jeito engraçado. Esse sorriso deve querer dizer algo como “coitado”. Que tal variar um pouco e tentar fazer amizade com algum morador? Quer ajuda, Tiago? Sorriso. “Seria uma boa... Você me ajudaria?” Claro! O que eu levo primeiro? “Agora, nada.” Oi? Não era pra eu ajudar, grande? “Entra aqui, estou fazendo um café. Aceita?” Café. Agora sim, um sorriso de verdade. Acho que a minha resposta positiva foi meio exagerada. Ele deu uma risada. “Então, você não me disse o seu nome...” Desculpa, é Henrique. Prazer, Tiago. Prazer.

domingo, 23 de outubro de 2011

Ela


“Se você ficar sozinho, pega a solidão e dança.”
-Três Dias – Marcelo Camelo

- Me abrace forte e, por favor, não me solte.

Essa vai ser a primeira coisa que eu vou dizer quando voltarmos a viver juntos. Digo “quando” porque, sim, eu acredito que há volta. É preciso acreditar.

Acredito, também, porque ela não me abandonou de todo. Saiu de casa, levando suas coisas, não era mais minha companheira fiel, mas ainda nos encontrávamos. Ela me ligava, me fazia breves visitas, escutávamos músicas juntos, íamos ao cinema... Mas não me entenda mal, não era o mesmo de antes. Ela me deixou, é fato, mas não é fácil abandonar alguém importante assim, do nada. É necessário reaprender a andar; a viver. Ela parecia não querer desistir de mim, e eu não podia; eu não posso permitir. Eu preciso lutar.

O motivo dessa separação? Não sei ao certo, mas tenho certeza de que foi algo idiota; um motivo ridículo; quase nada! Não é sempre assim que terminam os grandes relacionamentos? Sei, também, que a culpa foi minha. Ela foi se afastando aos poucos, até que, levando o calor e as cores, saiu de casa. Relutava em sair, eu via, e eu não queria permitir, mas, ao mesmo tempo, não podia pedir pra que ela ficasse, parecia que eu e ela, de repente, não estávamos na mesma sintonia. Então ela se foi.

E veio o frio. Com ele, a Solidão. E eu a acolhi. Não foi certo, eu sei! Por favor, querido amigo, não me julgue, mas eu estava carente... E não sei se só por isso, ou se tem um outro por quê, mas eu a abracei, e essa, a Solidão, tomou conta de mim. Tornou-se uma companheira inseparável, junto comigo até, e principalmente, à noite, no silêncio do quarto escuro, na cama.

Já me arrependi de tê-la deixado entrar, e já tentei expulsá-la, mas eu não tenho forças. Já cheguei a colocá-la pra fora, certa vez, mas, com a chuva, ela quebrou as janelas da minha frágil casa de vidro, e voltou. E voltou com força.

Eu me entreguei de corpo e alma. Eu caí naquele mundo escuro. Me envolvi em seus braços e afundei na água gelada da chuva, que ainda entrava pelas janelas quebradas. Mas, alguns anjos, mais ou menos celestiais ou caídos, que costumavam andar comigo, ainda estavam ali. Esses anjos amigos, apesar de distantes – minha companhia acabou se tornando insuportável –, permaneciam comigo. E me estenderam as mãos. Mas, mesmo com suas asas, não podem tocar nessa lama. Eu preciso sair dessa sozinho.

Esses anjos ainda convivem com aquela que me deixou, uns mais que os outros, e me trouxeram boas-novas. Ela ainda se importa comigo. Ela me quer bem. Ela me quer.

E eu a quero.

E vou lutar por ela.

Ainda estou fraco, as rachaduras nas minhas paredes de vidro ainda estão aqui, assim como a grande nuvem negra que paira sobre a casa, deixando tudo em tom de cinza.  Pelas janelas, entram a chuva e o vento frio que balança a casa.

Mas eu, antes encolhido num canto, com os ouvidos tampados, vou me levantar. Vou me erguer, me lavar, fazer a barba, passar um perfume, colocar uma música, e dançar. Dançar com a Solidão. Ela não vai embora enquanto a outra não voltar, já avisou. Então, já que vai ficar, que dance! Mesmo que se negue; mesmo que não goste, ao som da minha música, vai dançar.

A música vai abrir buracos na densa nuvem, e a luz do Sol vai poder, enfim, iluminar tudo isso. Meus passos de dança no carpete limparão a sujeira, trarão novas cores à casa e, aos poucos, a reconstruirão.

E ela vai voltar a ligar. Ligar e perguntar como estou. Eu responderei que poderia estar melhor, e ela dirá:

- Fica calmo, que, com o tempo, tudo melhora; em breve, melhora.

Bom, o Tempo, que antes não passava por aqui, eu convidei pra entrar. Servi café e cookies. E, agora, ele passa, enquanto observa minha dança.

Eu aumento o som, danço com mais vontade, arrastando a Solidão comigo. Em breve, melhora. Em breve, ela, a Felicidade, volta. E, quando voltar, eu vou abrir a porta e dizer:

- Me abrace forte e, por favor, não me solte.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Medo de chuva

Não, eu não tenho medo da chuva.

Eu tenho medo é desse sentimento; dessa solidão que vem com ela. Que vem e transforma as gotas d'água em lágrimas; os trovões em soluços de dor; e os relâmpagos em flashes daquilo que eu não tenho.

E eu só queria ter alguém com quem dividir.

Alguém que transformasse essas nuvens negras sobre minha cabeça em algo adorável; um belo urso de algodão, quem sabe? Alguém em cujos olhos eu pudesse ver, à cada clarão, um brilho ainda mais luminoso que todos os raios de Zeus. Alguém que, quando ficasse muito escuro, me abraçaria, me acolheria em seus braços, me protegeria de tudo. Um alguém que, em meu ouvido, e só pra mim, diria: "eu estou aqui; vai ficar tudo bem".

E, sim, ficaria tudo bem.

Ficaria tudo bem porque o meu alguém estaria aqui, comigo. Ficaria tudo bem porque eu poderia dividir a real beleza da chuva com esse alguém. Ficaria tudo bem porque, se ficasse muito escuro, muito barulhento, ou se o vento ameaçasse derrubar a minha casa, eu teria alguém, aqui, pra me proteger. Ficaria tudo bem porque, enfim, eu poderia dividir aquilo que eu já não mais posso carregar sozinho. Poderia dividir cada uma dessas gotas que caem do céu. Me dividir. E, ainda assim, estar mais completo do que nunca.

domingo, 18 de setembro de 2011

Chore

É hora de chorar.

Pode parecer errado, num primeiro momento, mas chegou a hora de sofrer. E de colocar esse sofrimento pra fora. Chega de ficar guardando tudo pra si. Chega! Junte tudo o que te magoa, no momento; junte tudo no coração, e não resista ao impulso. E chore.

Deixe que as lágrimas lavem a sua alma. Deixe que caiam mais salgadas do que nunca, temperadas com a dor do seu coração. Livre-se do mal.

Chore. E feche os olhos, sob a água do chuveiro, e imagine a chuva. A chuva que vem e lava. Lava tudo, e leva a sujeira pra longe, e a derrama longe da sua vista, do seu alcance. Que a torne, a sujeira, invisível. Que te torne intocável.

As lembranças da dor - os ecos dos trovões dessa tempestade - ainda vão te assombrar por um tempo, é certo. Não vai ser fácil, mas também não precisa ser tão difícil. E, tal qual chuva, o sofrimento não pode ser controlado - nem tente!

Sofra sozinho, no escuro do seu quarto, no frio da cama, inundando o travesseiro. Mas também sofra acompanhado. Não queira parecer forte - não é hora. Apoie-se nos ombros que se mostram amigos. Chore neles. As lágrimas de dor vão se misturar com aquelas, mais doces, que vêem do alívio. Enquanto o sofrimento sai, o coração se inunda de carinho. O calor de um bom abraço vai aquecer a sua alma, e ajudar a eliminar a dor.

Não é esquecer, a questão. É aprender; superar. Já que dói, sofra. Não vai, e não pode!, doer pra sempre.

Depois, ao fim da chuva, e só quando tudo acabar, levante. Erga a cabeça, seque os olhos, e siga o seu rumo. A vida continua.

Sorria. Agora, é hora de sorrir.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Confiança

Eu confiei tanto em você.

Pode parecer exagero, agora, mas eu confiei a minha vida a você. Mas não sei se ainda acredito no que pode fazer por ela. Sei que seu amor é forte. Dizem ser o mais forte que um ser-humano é capaz de sentir, de suportar, e estou confiando nisso.

Amor.

Mas eu queria mais. Por que você não pode me entender, e me abraçar, me dizer que está tudo bem, e que tudo ainda vai melhorar? 

Por quê? 

Por que você não pode me aceitar, de uma vez, me levar pela mão, e me ajudar a enfrentar todo esse terrível mundo lá de fora, que você tanto faz questão de ressaltar?

No fundo, eu ainda confio.
Eu quero confiar.
Em você.
Em mim.
No amor.

Confiança.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

E vou adiando


Eu penso demais. E, aqui, o meu erro é esse. À espera de um momento perfeito que nunca vai chegar, vou adiando tudo. 

Vou adiando carícias, abraços e beijos. Adiando mãos que se tocam, e passeiam pelos corpos. Adiando conversas cochichadas ao pé do ouvido - e segredos de liquidificador. Adiando filmes ruins, que não serão assistidos porque há mais o que fazer, debaixo do cobertor. Adiando passagens de livros que ficarão pra sempre marcadas como partes de uma história escrita por dois autores. Adiando sorrisos que brotam do nada, assim que os olhares se cruzam. Adiando brigas idiotas - e a hora de fazer as pazes, que se segue. Adiando momentos em que palavras são absolutamente desnecessárias. Vou adiando toda aquela baboseira que é a paixão. Vou adiando a felicidade. E tudo o mais que vier com o amor.

Enquanto isso, a vida passa pela janela. Essa eu não consegui adiar.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Branco-nada

- Esse quarto não era assim, tão claro, tão branco, quando eu comprei essa casa... Ou era?

Claro que era. A casa, um tanto isolada, na beira de um penhasco que acabava no mar, tinha seus dois andares de muito vidro, e muito branco. E branco também estava aquele dia, ou ao menos aquela manhã. Amanheceu nublado, e o Sol estava escondido em algum lugar distante, fazendo com que a luz, também branca, viesse de todos os lados, e de lado nenhum.

Diogo foi acordado pela claridade, já que não fechara a cortina, deixando que as estrelas lhe fizessem companhia na noite insone - só conseguira adormecer quando a Lua já se despedia e, assim que a luz do Sol deu à negra escuridão dos seus olhos cerrados um certo tom de vermelho, acordou.

Estava nu, envolvido no lençol (branco). Levantou-se e foi direto para os jeans, ao pé da cama. Vestiu, subiu o zíper, mas não abotoou, deixando à mostra os pelos escuros. Caminhou até o armário, pegou um pesado cobertor, e cobriu a encolhida mulher que, nua, na cama, se protegia do frio com o mesmo lençol que ele abandonara. Para ele mesmo,  não pegou nada. Ele podia suportar aquele frio. Ele precisava sentir aquele frio.

Diogo caminhou até a varanda, que dava para o mar, e cumprimentou o nada. Fechou os olhos verdes, mas não conseguiu conter as lágrimas, que rolaram como se o seu esforço fosse absolutamente inútil; um nada. Assim que voltou a abrir os olhos, eles estavam verdes e vermelhos.

Lembrou-se que, na manhã anterior, onde agora dormia a linda mulher, amanhecera um belíssimo garoto, de uns dezenove anos, no máximo, e, nenhum dos dois casos significou uma mínima coisa pra ele. Vazio. Branco. Era assim que se sentia.

Tinha educação acadêmica - e familiar, apesar dos pesares -, tinha sucesso, tinha dinheiro, tinha beleza (muita!, e seu ar melancólico era um algo a mais), e, tudo isso, aos vinte e cinco anos de idade. Ainda assim, vazio. Ele já sabia o que era: faltava companhia; alguém com quem dividir tudo o que tinha.

Até então, não encontrara esse alguém. Já procurou entre jovens e maduros, homens e mulheres, ricos e pobres, aqui e no exterior. Nada. Tudo o que conseguia, o seu prêmio de consolação, talvez, era sexo. Na maioria das vezes, sexo dos bons, deve-se dizer, mas nada além de sexo. E não era o suficiente.

Diogo precisava de amor! Não necessariamente um amante, mas um amor. Alguém que o fizesse se sentir completo, e o amasse assim, completo. Alguém que amasse sua alma, além de seu tentador exterior. Amor do tipo Romeu & Julieta, pelo qual fosse capaz de matar ou morrer. Amor tipo amigo, irmão. Amor.

Filho único de pais que não nasceram pra esse ofício, foi expulso de casa enquanto cursava a antiga oitava série do ensino fundamental, quando descobriram que se relacionava com um garoto da classe - como se pudéssemos chamar aquela paixonite pré-adolescente, em que o máximo de contato era uma língua na outra, uma ou duas vezes, de relacionamento. A avó, essa sim nascida com o dom da maternidade, do amor, o adotou. Viúva, o levou para sua casa, e cuidou dele como seu. Viveram juntos por alguns anos. Quando Diogo cursava o quarto semestre da faculdade de Comunicação, ela faleceu, deixando para o neto (ou filho), e só para ele, a casa na qual moravam e uma pequena fortuna. A avó fora o último amor de sua vida. A partir daí, focou-se (ou fechou-se) nos estudos, no trabalho, cresceu, chegou onde estava. Sozinho.

No momento, ele precisava de alguém. O problema é que não conseguia se abrir, e ninguém conseguira, até então, romper a sua barreira e chegar aonde dói; chegar à sua alma.

Fechou novamente os olhos, ainda úmidos e avermelhados, respirou fundo e voltou para o quarto. A mulher acordara, e já terminava de se vestir. Ela o cumprimentou com um bom dia. Ele respondeu com um sorriso triste que não sustentou por muito tempo. Pronta, se despediu com um beijo vermelho que ficou marcado na bochecha do rapaz - seria na boca, se ele tivesse permitido -, e deixou o número do seu telefone, anotado em um pedaço de papel, no bolso da calça desabotoada de Diogo.

Ele a acompanhou até a porta, e ela se foi. Ele limpou a marca de batom, jogou a calça, ainda com o número no bolso, na máquina, pra lavar, e foi para o banho, se preparar para o dia branco que só começava. A busca por companhia, por amor, por completude, continua. Até encontrar. Ou até morrer assim, vazio, num dia assim, branco.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Highway to hell, with love

Naquela segunda, acordaram de manhã, bem cedo. Só estavam com um dos carros, a viagem seria um tanto longa, e não poderiam se atrasar para o trabalho.

Com o despertador, ou beijos e carícias, levantaram-se da cama meio coberta com lençóis brancos - por mais que tentassem o contrário, toda manhã era aquela bagunça - e, juntos, foram para o banho. Fizeram amor sob o chuveiro.

Vestiram-se e desceram as escadas para o café da manhã. Outra coisa com a qual não se acostumavam, era com um desjejum saudável e variado. Tomaram leite ou suco, comeram um pedaço de bolo ou uma maçã. Isso, enquanto corriam atrás de papéis no escritório que lutavam para organizar e realizavam ligações apressadas para uma ou outra secretária. Segunda-feira corrida, essa!

Tudo pronto, saíram de casa e entraram no carro, não sem, antes, cumprimentar o vizinho e a esposa, que saiam na mesma hora, na mesma pressa, e com a simpatia de sempre. Deixaram o condomínio, que fica em um dos limites da cidade, ao som de "Highway to Hell", brincando que aquele dia seria mesmo um inferno. AC/DC continuou tocando durante todo o caminho - o gosto pelo rock era um dos mais fortes pontos que tinham em comum e, juntos, tinham uma coleção invejável de albúns do estilo.

Conversavam amenidades, e a pauta principal era o almoço em família do dia anterior:

- Sua mãe fica cada vez mais linda, hein?

- Ela me disse o mesmo de você. Tenho a impressão de que, se um dia nos separássemos, meus pais não olhariam mais na minha cara, e te adotariam!

A resposta veio acompanhada daquele belo sorriso, sempre elogiado, por quem quer que o visse.

Cerca de vinte minutos depois, chegaram no escritório de advocacia, num bairro chique da capital. Assim que o carro parou, as mãos, como de costume, se encontraram, e veio o comunicado:

- Hoje jantamos fora, tá? Naquele restaurante novo, que você disse querer conhecer.

- Sério? Mas você sai a tempo?

- Sim, sim. Já organizei tudo, e hoje não vou estar de plantão.

- Que lindo! - E o mesmo belo sorriso iluminou o seu rosto. - Te espero, então.

Se beijaram. Um beijo daqueles! Daqueles em que dá pra sentir o amor só de olhar, em que você se sente completo, imortal, amado como nenhum outro ser, jamais, o será, e, mesmo assim, seguiram-se as palavras:

- Eu te amo.

Dr. Samuel, o advogado, desceu do carro sem esperar resposta, com aquele sorriso, ainda mais belo - como se fosse possível - e com a felicidade nos olhos. O dia até poderia ser um inferno, mas ele só sentiria o seu amor, que sabia ser retribuído com todas as forças. Brega? Ele também achou, mas não liga.

Do mesmo modo, Dr. Ian, o médico, seguiu para o consultório, do outro lado da cidade, pensando que, se é assim o inferno, gostaria de queimar por toda a eternidade.